O Desgraçado

Eu sou ateu.

Fico surpreso com como pessoas ao meu redor podem se surpreender com esta revelação – creio que meu “bom comportamento” e grande interesse em religião me fazem parecer um bom católico; o que eu consigo compreender.  Mas enfim: eu sou ateu.

Alguns anos atrás, a súbita descoberta do meu ateísmo deixou um colega estarrecido, e o seguinte diálogo aconteceu:

Colega: Mas você nunca sentiu a presença de Deus? Em algum lugar, em algum momento?
Eu: Não.

Este “Não” foi uma resposta rápida e impulsiva, mas a pergunta me corroeu ao longo dos próximos dias. Me fez notar que não, de fato eu nunca tinha sentido a presença de Deus, e não por falta de ter tentado.

Estou falando especificamente do deus de Abraão, mas o mesmo vale para qualquer outra entidade divina/criadora/difícil de entender.

Eu procurei por Ele, bastante, e tudo o que eu conseguia sentir era justamente a ausência de Deus. Eu rezava, clamava por ele, participava dos rituais, fechava os olhos, chorava, louvava, empatizava, contemplava seu muitíssimo mais amigável filho – e nada. Note que não exatamente esperava por um milagre ou qualquer tipo de “sinal” – esperava somente que algo preenchesse o buraco. Mas havia somente o buraco, vazio, e tentar preenchê-lo somente servia somente para evidenciar o seu tamanho. Me fazia sentir vazio, incompleto.

E o colega continuou – “Você não sente deus nos momentos bons da vida? Nas epifanias gostosas, nas memórias que pensa quando quer se animar?”. Talvez no sentimento gostoso de terminar um bom trabalho, no calor de um romance, no carinho de uma amizade, na delícia de uma boa conversa, na agitação de uma boa luta, na beleza da natureza, na magia de uma canção, no ronronar de um gato?

Não.  A beleza destes momentos é de crédito das circunstâncias que os cercam, não de Deus. E o trabalho já não me dá tanto prazer, o romance se torna dor, a amizade se gasta, a conversa se vai, a luta hoje só me assusta, a natureza morre, já não ouço tão bem a canção, o gato me arranha em seguida. Para mim, a efemeridade destas experiências só ilustra a ausência Dele.

Acho que pouca gente tem ciência da origem e peso da palavra – me dá arrepios ouvir.

Me lembrava de uma das muitas conversas gostosas com um amigo sobre vocábulos. Sobre a palavra “desgraçado“; como esta é a pior ofensa possível quando proferida por um cristão. Desgraçado é aquele sem a Graça –  Graça divina, a presença e influência de Deus. O desprezado, aquele que vive a pior solidão possível. Afinal, das duas uma – ou um Deus que ama toda a sua criação especificamente não te ama, ou ele te ama mas você é quebrado demais para reconhecer. Que tipo de pessoa é tão desprezível ou ingrata assim? Um desgraçado, e era assim que eu me sentia.

Daí o tempo passou – alguns anos. Muita coisa mudou.

E ontem alguém fez a pergunta novamente.

Colega: Mas poxa, você nunca sentiu a presença de Deus?
Eu: Não. Felizmente não sinto mais a falta dele, também.
Colega: Como assim?
Eu: hmmm, esquece.

E me peguei apreciando a naturalidade pela qual esta resposta saiu.

Este episódio não é o único motivo pelo qual sou ateu, nem de longe – só é o mais ilustrativo.

Me peguei imensamente feliz ao notar que não tenho mais o “buraco em formato de Deus”. Que a ausência dele me proporciona alívio, me faz viver satisfeito mesmo quando infeliz, intrigado mesmo enquanto confuso, aprendendo enquanto sofrendo, curioso enquanto perdido.

Hoje em dia, a possibilidade de Deus existir me enche de horror. A presença de Deus arruinaria tudo. Felizmente, parece ser algo tão improvável que não perco muito tempo pensando nisso.

Você não é mais um desgraçado se não espera graça.

Então sim, sou ateu.

— Matheus E. Muller

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