Far Centaurus e a cápside do HIV

Recentemente me lembrei de um conto chamado Far Centaurus que, apesar de vários problemas narrativos (longo demais, confuso demais, e com um desfecho pouco inspirado – como a maioria das obras do autor), era construído ao redor de uma ideia interessantíssima e muito memorável. Nele ocorre mais ou menos o seguinte:

Far Centaurus

“spoiler alert” para Far Centaurus; mas francamente não tem nada interessante na estória além do que eu comentarei agora.

Em um futuro próximo, é descoberta uma tecnologia capaz de manter humanos em um estado de ‘hibernação‘ por séculos. Notando que esta tecnologia na prática possibilitaria viagens espaciais extremamente longas, um grupo embarca em expedição até a galáxia vizinha de Alpha Centauri para colonizá-la – esperando chegar em 500 anos.

Ao chegarem na galáxia, eles acordam da hibernação e são recebidos – para grande surpresa deles – por uma complexa civilização humana, praticamente irreconhecível tamanho o seu avanço tecnológico. No intervalo de 500 anos da viagem, a tecnologia avançou de tal forma que a viagem entre Terra e Alpha Centauri agora demorava somente algumas horas; portando a galáxia já estava colonizada por humanos há mais de um século.

Ou seja, apesar da viagem tecnicamente ter sido um sucesso, o empreendimento em si foi fundamentalmente em vão; e os viajantes – que embarcaram com a determinação necessária para uma viagem sem volta e esperando estarem fazendo um grande serviço pela humanidade – nunca se recuperam psicologicamente desta experiência.

isso é comum em projetos de pesquisa e tecnologia; e é uma variação do clássico dilema exploração vs aproveitamento, que trata da dificuldade em achar um equilíbrio entre continuar pesquisando possibilidades ou aproveitar as oportunidades já disponíveis.

O conto é um alerta fascinante sobre o perigo de avanços tecnológicos deixando grandes empreendimentos anteriores obsoletos: no tempo que um projeto longo demora para ser concluído, mesmo que ele seja bem-sucedido tal sucesso já pode não ser mais relevante.

Gilead vs. cápside do HIV

Cápside é a membrana que envolve um vírus; como uma embalagem plástica. Comprometer a cápside de um vírus resulta em ela rompendo quando não deveria ou sendo incapaz de se romper quando deveria (durante o processo reprodutivo deste); ambas situações que impedem o avanço de uma infecção viral. Drogas capazes de atingir cápsides são consideradas o “santo grall” da pesquisa farmacêutica antiviral, mas desenvolver tais medicamentos é uma tarefa excepcionalmente trabalhosa e demorada, e sucesso não é comum.

Uma representação molecular da GS-CA1, Gilead.

No último mês, o laboratório Gilead publicou os resultados de um projeto de 12 anos de desenvolvimento que resultou, finalmente, em uma molécula capaz de danificar a cápside do vírus HIV – não é uma cura para AIDS, mas certamente atrasa a infecção e os sintomas. Isto deveria ser uma notícia fantástica, mas não vejo muita gente animada sobre. Por quê?

Quando este projeto foi iniciado – 12 anos atrás – AIDS era uma sentença de morte rápida e sofrida, e não haviam boas opções de tratamento. Hoje em dia felizmente isso não é mais verdadeiro: tratamentos com coquetéis de medicamentos são relativamente acessíveis e possibilitam sobrevivência com boa qualidade de vida por muitos e muitos anos.

Esta molécula já não é mais o tratamento mágico e promissor que parecia na época – agora ela é somente mais uma opção de tratamento, tendo que competir contra o custo/benefício das (já bem satisfatórias) opções atuais. Afinal, se isso não trazer benefícios claros para pacientes, estes não terão motivos para preferir este tratamento; e sem um público potencial, esta droga não será um produto comercialmente viável.

E aí?

Ver o que deveria ser um imenso progresso na luta contra o HIV na prática sendo algo quase irrelevante é um sentimento… peculiar, e eu não consigo imaginar como a equipe responsável se sente sobre, tendo trabalhado neste projeto por 12 anos enquanto assistiam outros tratamentos ficarem mais viáveis e ficava claro que a droga não seria mais um sucesso estrondoso e pioneiro.

A pouca relevância destes resultados ilustram também um ponto muito importante: salvo o potencial de um dia obtermos uma cura completa para a AIDS, já não há muito mais que a medicina possa fazer sobre o HIV, e as nossas maiores chances de reduzir o número de infectados e seu sofrimento é através de prevenção.

 

— Matheus E. Muller

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